Nota introdutória
Foi o inglês John Salisbury, no século 12, que escreveu a famosa frase: se posso enxergar mais longe, é porque estou em pé no ombro de gigantes. Essa metáfora serve igualmente para os trabalhos científicos, aqueles que nos precederam e nos permitiram crescer, expandindo nosso conhecimento. Nesta nova coluna, que terá a competente coordenação de Paulo Müller, vamos trazer aos leitores alguns dos artigos que representam grandes avanços na nossa área de atuação. Seus autores recebem o merecido título de pioneiros, porque quebraram tabus, estabeleceram novos paradigmas, deram um significativo salto seja no aspecto da clínica ou na esfera da cirurgia do cabelo. Inauguramos com o artigo de Headington, patologista britânico, que estabeleceu em 1984 a existência das unidades foliculares. Ao estudar a histologia dos folículos em cortes transversais, e não apenas verticais, ele pôde observar que os fios crescem em grupos distintos. E assim foi estabelecida a base da cirurgia de unidades foliculares.
Com estes artigos clássicos, pretendemos reforçar a ideia de que o bom especialista em restauração capilar não é apenas um competente cirurgião, mas também o que possui uma cultura científica que o permitirá enxergar sempre um pouco mais longe e, quem sabe, oferecer um ombro para as próximas gerações.
Henrique Radwanski, editor
Transverse microscopic anatomy of the human scalp. A basis for a morphometric approach to disorders of the hair follicle. John T. Headington. Arch Dermatol. 1984
Paulo Müller Ramos
Doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de São Paulo – UNESP
Coordenador do ambulatório de Tricoses da UNESP
As amostras de pele colhidas por biópsia, independente da localização, são tradicionalmente submetidas a cortes histológicos longitudinais para análise microscópica. Esse tipo de secção propicia condições para avaliação das diversas camadas da epiderme e derme, além da visualização dos anexos cutâneos, como o folículo piloso.
Porém, para análise de biópsias do couro cabeludo essa abordagem traz importantes limitações. A principal delas é a avaliação de poucos folículos por corte. Além disso, ela não permite uma clara análise comparativa dos folículos entre si (anágenos x telógenos ou terminais x velos) ou mesmo dos folículos com outras estruturas anatômicas, como a glândula sebácea.
A forma como as biópsias do couro cabeludo são analisadas mudou em definitivo após a publicação do Dr. John Headington em 1984, em que ele argumenta que a análise estrutural do couro cabeludo poderia ser feita por uma reconstrução de múltiplos cortes verticais, ou com uma solução muito simples e barata, o preparo das lâminas para leitura em cortes transversais.1
Ele considera que o ponto ideal para iniciar os cortes horizontais após a fixação das peças seria o nível em que as glândulas sebáceas desembocam no folículo, altura em que a bainha radicular interna ainda está intacta. Esse ponto geralmente está 1 mm acima da junção da derme com o subcutâneo. As duas metades são inseridas no mesmo bloco. Dessa forma, os cortes seriados irão evidenciar estruturas mais próximas da epiderme no corte superior e mais próximas do subcutâneo nos cortes inferiores.1
Os cortes transversais propostos por Headington evidenciam de maneira muito clara a estrutura das unidades foliculares. Cada unidade habitualmente constitui-se de dois a quatro folículos terminais, um ou dois folículos velos, glândula sebácea e inserção do músculo piloeretor nos folículos terminais. A identificação dos folículos velos ou miniaturizados pode ser realizada pelo diâmetro da haste (menor que 0,03 mm) ou de maneira mais simples, aqueles que apresentem haste de espessura igual ou mais fina que a bainha radicular interna. Além disso, a avaliação quantitativa da densidade dos folículos e unidades foliculares fica extremamente simples de ser realizada.
O conhecimento dessas estruturas anatômicas, assim como o seu padrão de distribuição foram fundamentais na compreensão e diagnóstico da alopecia androgenética, em que muitas vezes o aumento da proporção de miniaturizados precede a diminuição global de densidade.2
A individualização das unidades foliculares associada ao conceito de dominância da área doadora, conforme nos apresentou Orentreich em 1959,3 foram os pilares que permitiram o sucesso e naturalidade do transplante capilar da forma que conhecemos atualmente.3 Com a adoção do microscópio com 10X de aumento, inicialmente descrito por Limmer em 1992,4 o especialista em restauração capilar pôde reproduzir a distribuição natural das unidades foliculares.5
Apesar das claras vantagens dos cortes horizontais, ainda existem patologistas não familiarizados com a análise desse tipo de material. É fundamental que o cirurgião de restauração capilar conheça os elementos básicos da histologia do couro cabeludo, das técnicas de processamento e que tenha canal aberto com o patologista de referência para encaminhamento do material e discussão dos casos mais difíceis.
Vale ressaltar que os cortes transversais trazem algumas desvantagens, como a difícil visualização da epiderme nos primeiros cortes. Essa avaliação pode ser particularmente importante na investigação de doenças inflamatórias do couro cabeludo como lúpus ou psoríase. Nesses casos, podem ser colhidos dois punchs (um para corte vertical outro horizontal) ou pode ser realizada a técnica “HoVert” em que a epiderme é separada para cortes longitudinais e o restante do material é submetido a cortes verticais.6
Alguns autores argumentam que os cortes horizontais não foram inventados pelo Dr. Headington, de qualquer forma, ele merece grande crédito por descrever, refinar e popularizar essa técnica.7 Interessante observar como grandes saltos no conhecimento podem advir de ideias extremamente simples: cortar um punch na horizontal ou invés da vertical. Porém, essa solução mostrou-se óbvia apenas após a sua descrição, aí que reside a genialidade do autor.
Referências:
1. Headington JT. Transverse microscopic anatomy of the human scalp. A basis for a morphometric approach to disorders of the hair follicle. Arch Dermatol. 1984 Apr;120(4):449-56
2. Ramos PM, Miot HA. Female Pattern Hair Loss: a clinical and pathophysiological review. An Bras Dermatol. 2015 Jul-Aug;90(4):529-43.
3. Orentreich N. Autografts in alopecias and other selected dermatological conditions. Ann NY Acad Sci. 1959;83:463.
4. Limmer R. Bob Limmer does it all one hair at a time. Hair Transplant Forum Int. 1991;2:8–9.
5. Jimenez F, Alam M, Vogel JE, Avram M. Hair transplantation: Basic overview. J Am Acad Dermatol. 2021 Oct;85(4):803-814.
6. Elston DM, McCollough ML, Angeloni VL. Vertical and transverse sections of alopecia biopsy specimens: combining the two to maximize diagnostic yield. J Am Acad Dermatol. 1995 Mar;32(3):454-7.
7. Sperling LC, Cowper SE, Knopp EA. An atlas of hair Pathology with Clinical Correlations. Second Edition. 2012.
Folículo - Edição 24